O
comportamento aterrador de certos juízes deveria incentivar o debate sobre a
democratização efetiva do Judiciário
por Vladimir Safatle, em 01/03/2015.
O Brasil é a melhor prova de que o Poder Judiciário
é o resquício da monarquia no coração da República. As histórias estarrecedoras
divulgadas pela imprensa a respeito de um juiz pego por dirigir o Porsche
apreendido do empresário Eike Batista, outro a dar voz de prisão a uma fiscal
de trânsito que o multou por dirigir sem carta, de um terceiro que fez o mesmo
com funcionários da TAM em um aeroporto por ter perdido seu voo, não são apenas
casos tragicamente anedóticos. Elas são o sintoma da autonomia profunda do
Judiciário em relação aos mecanismos de prestação de contas e de pressão da
soberania popular.
Um juiz que debocha da população ao sair com
um carro apreendido e ainda declara ter feito isto porque o carro estaria mais
bem protegido em suas mãos sabe que não só nada lhe ocorrerá, mas que sua
posição de juiz sempre será uma intimidação contra quem ousar criticá-lo. Como
a antiga nobreza monárquica, ele sabe estar longe do alcance da lei e da força
da crítica, pois, no seu caso, é ele quem aplica a lei. Na zona obscura da
decisão a respeito da aplicação da lei, sempre é possível operar a partir de
seus próprios interesses se os mecanismos de pressão e controle são ineficazes.
No caso brasileiro, não é novidade que os mecanismos de autocontrole desenvolvidos
pelo Judiciário se mostraram, até o momento, fracos e incapazes de se contrapor
às interferências do espírito de corporação. Juízes julgando juízes são como
militares julgando militares, policiais julgando policiais. Todos sabemos qual
o resultado dessas relações tautológicas.
Nada disso, no entanto, deveria nos surpreender.
Contrariamente aos outros dois Poderes, eleitos a partir da decisão popular e
passíveis de não serem reconduzidos, o Judiciário acredita tirar sua
legitimidade de alguma espécie de “direito por saber”. No entanto, é da
essência da democracia quebrar toda legitimidade por saber, nascimento ou
riqueza. A democracia, ao menos em seu conceito, não é o governo do mais sábio,
do mais rico ou dos “bem-nascidos”. Ela é o governo de “qualquer um”, ou seja,
daquilo que define todos em relação de igualdade. Qualquer um pode (ou ao menos
deveria poder) assumir a gestão do poder, daí porque, por exemplo, a
profissionalização da política é uma das maiores aberrações antidemocráticas.
Ancorado na crença da existência de um “saber
jurídico” que não é resultado da expressão da soberania popular, o Judiciário
brasileiro foi capaz de se colocar como único imune à escolha popular em todas
as suas instâncias. Conhecemos países nos quais os promotores são eleitos,
outros nos quais mesmo os membros do Supremo Tribunal são igualmente eleitos,
mas no Brasil não apenas isso sequer é discutido como poucas coisas são mais
difíceis do que afastar um juiz corrupto ou parcial. Até mesmo o finado
Demóstenes Torres continuou ligado à sua função de desembargador, isso após sua
fantasia de defensor da moralidade costurada pela revista Veja cair
de podre.
Nesse sentido, exemplos como o comportamento
aterrador de certos juízes brasileiros deveriam nos incentivar a levar ao
debate público a necessidade de democratização efetiva do Judiciário. Os
sistemas de indicação e concurso não são sempre os mais adequados para um Poder
que quer se colocar como o guardião do espírito das leis. Quem não é investido
diretamente pelo povo não pode compreender o espírito de leis que deveriam ser
a expressão da soberania popular.
Essa é mais uma expressão de como a forma de
democracia parlamentar que temos e fomos capazes, até agora, de construir não
nos serve mais. A necessidade de invenção institucional nunca foi tão urgente,
assim como nunca foi tão urgente a capacidade de pensar estruturas
institucionais que aumentem a densidade da participação popular nos processos
decisórios de todos os Poderes. Enquanto isso não ocorrer, teremos de nos
acostumar com esse espetáculo deprimente de juízes com comportamentos de quem
mereceria estar do outro lado no tribunal.
não concordo com a democratização efetiva do judiciário, já que os brasileiros não sabem eleger as pessoas certas ou corretas para o poder. Exemplo disso é a maioria dos políticos eleitos.
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