“A Rocinha não precisa de teleférico,
mas sim de saneamento básico”
Especialistas e moradores da Rocinha querem que o
saneamento básico seja priorizado para acabar com doenças como a tuberculose
Vala de
esgoto na Rocinha. / Victor Moriyama
“Há 20
anos moro na Rocinha. Há 20 anos não sinto o cheiro da minha comida. Há 20 anos
me deito todos os dias para dormir com esse cheiro de esgoto ao lado”. Assim
resumiu uma moradora da favela da Rocinha um dos mais graves problemas
urbanísticos desse território na zona sul do Rio
de Janeiro: a falta de saneamento básico, que dissemina doenças e
pode inclusive comprometer o desenvolvimento de uma criança em sua fase de
crescimento. Grandes valas que concentram e misturam esgoto, lixo e ratos são
os principais vizinhos dos mais de 100.000 habitantes dessa comunidade. Vivem
lado a lado. Em uma das ruas principais na parte de baixo da Rocinha, um grande
canal a céu aberto, conhecido como valão, recebe todo esse esgoto não
tratado e o despeja na praia de São Conrado, localizada a poucos metros da
comunidade.
Enquanto
isso, moradores e entidades locais reclamam que o poder público prioriza gastar
milhões em obras "midiáticas", como o teleférico previsto nas obras
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) e similar ao do
Complexo do Alemão. Especialistas argumentam que as obras para construção de
uma rede de esgoto não apenas resolveria a questão da insalubridade, mas
principalmente avançaria na urbanização de toda a comunidade: becos estreitos
seriam transformados em ruas mais largas e famílias deixariam suas moradias
precárias e seriam reassentadas. Permitiria, enfim, a entrada de luz solar e a
circulação de ar pela favela, o que atacaria diretamente a alta taxa de
incidência de tuberculose na região, de 372 casos por 100.000 habitantes.
"A
remoção dos moradores daquelas grandes valas vai abrir espaço. Entra ar, entra
sol, facilita a respiração. Cria condições básicas para que não haja
tuberculose", explica Maria Maria Helena Carneiro de Carvalho, de 58
anos e diretora do Centro Municipal de Saúde (CMS) Dr. Albert Sabin, que levou
questões sanitárias nos debates para urbanizar a Rocinha. A questão entrou com
força na comunidade entre 2005 e 2007, quando o arquiteto Luiz Carlos Toledo
ganhou o concurso do Estado para desenvolver um plano diretor para a
comunidade. Instalou seu escritório no lugar e desenvolveu o plano junto com
outros arquitetos e os próprios moradores.
A rua do "valão", na Rocinha. / Victor
Moriyama
O plano
diretor começou a ser aplicado nas obras do PAC 1, uma parceria entre o Governo
do Estado e o Governo Federal lançado a partir de 2009. "Só que fizeram o
que mais aparece: um complexo esportivo, uma passarela desenhada pelo Niemeyer,
uma UPA, um conjunto habitacional… São importantes, mas o saneamento básico é
mais importante que tudo isso", argumenta José Martins de Oliveira, líder
comunitário de 68 anos e um dos fundadores do grupo Rocinha sem Fronteiras, que
promove debates entre os moradores a respeito de seus direitos e deveres.
As obras do
PAC 1 ainda não foram concluídas —falta terminar o mercado popular e um
elevador num plano inclinado— e as obras de saneamento que estavam previstas
ainda não foram nem iniciadas, explica Martins. No entanto, o Governo se
apressou em anunciar em 2013 o PAC 2 e investimentos de 1,6 bilhão de reais
para a comunidade. Foi quando começou a polêmica do teleférico: o Governo do
Estado anunciou então a obra como uma solução para a mobilidade na Rocinha,
ligando seus moradores inclusive às futuras estações de metrô na Gávea e em São
Conrado
A Administração
de Luiz Fernando Pezão (PMDB) não respondeu às perguntas enviadas pelo EL PAÍS.
Em uma entrevista ao portal Brasil247 em outubro
do ano passado, o governador afirmou: "O teleférico poderá transportar
3.000 passageiros/hora, fazendo com que o morador da parte alta chegue em oito
minutos ao metrô (...) A maioria dos moradores e urbanistas aprovam o projeto.
Com duas linhas e seis estações (uma interligada ao Metrô de São Conrado e
outra ao bairro da Gávea), temos certeza que tornará mais rápido o
deslocamento, o que contribuirá para a melhoria da qualidade de vida da
população".
Luiz Carlos
Toledo, arquiteto responsável pelo plano diretor, possui uma opinião diferente:
"Pensar em teleférico antes de saneamento é uma estupidez. É trocar uma
coisa importante para a saúde daquela população por uma obra midiática. É um
absurdo", opina. Calcula-se que o teleférico custaria 700 milhões, mas o
Governo do Estado tampouco confirmou e nem aclarou os valores.
Milhares de
moradores se reuniram, ainda em 2013, em passeatas contra o projeto
e até foi criada uma campanha da ONG Meu Rio
para pressionar o Governo a desistir da ideia e investir no saneamento básico.
Os que são contrários ao teleférico se baseiam na experiência do Complexo do
Alemão: lá, foram investidos cerca de 600 milhões de reais no projeto que,
segundo se calcula, removeu milhares de pessoas de suas casas, mas que é
aproveitado apenas por 10% da população e possui um custo alto de manutenção
—mais do que arrecada por mês. "O saneamento também removeria gente, mas
você deixa um legado: abre ruas e acaba com doenças, como a tuberculose e a
hepatite. O teleférico tem que parar com chuva, tiroteio, funciona só até
determinado horário… A rua vai estar lá sempre", acrescenta Martins.
Toledo
explica ainda que seu projeto tinha previsto um sistema de cinco planos
inclinados (elevadores) com várias estações, que articularia os becos da
rocinha. "Eles seriam construídos a partir da estrutura criada para o
saneamento básico. Não adianta botar infraestrutura só nos ramais do
teleférico. E o resto, como fica?", argumenta. "De qualquer forma, os
alargamentos das vias têm que ser feitos com muito cuidado, senão a Rocinha é
destruída. Tem que ter muito bom senso".
"A
questão é mais complexa"
A arquiteta
Daniela Javoski, que trabalhou no plano diretor junto com Toledo e hoje, com o
seu escritório ArquiTraço, participa das obras do PAC, possui uma visão
diferente a respeito do saneamento básico. "A Rocinha tem uma
infraestrutura macro, que são as principais vias. Nelas, se pode resolver de
forma rápida a questão do saneamento". Essas obras "macro", diz
ela, já estavam previstas no PAC 1 e no PAC 2. Além disso, argumenta, as obras
do teleférico se aproveitariam da estrutura criada para a criação da rede de
esgoto.
O problema é
a infraestrutura micro, aquela que chega na casa da pessoa, segundo ela.
"Não é apenas a questão do beco, é a forma como as casas estão
construídas. E para que o saneamento chegue nesses lugares, você tem que tirar
casa pra caramba!", explica. "O saneamento macro já resolveria grande
parte do problema. Depois, é uma questão de fazer lotes de remoção para fazer o
micro. É uma questão social muito delicada, um processo que pode durar 30 anos!
Não é no PAC 1 ou 2 que vai resolver".
As obras na
Rocinha do plano inclinado estão paradas. / Victor Moriyama
De qualquer
forma, todos concordam em um ponto: falta vontade política para levar a cabo um
plano a longo prazo para urbanizar e levar saneamento para a Rocinha, acabando
com doenças como a tuberculose. "Insisto: não é o momento de teleférico. O
momento, desde que eu me conheço por gente, é tapar as valas que existem.
Precisamos abrir espaços, melhorar os caminhos. Há 58 anos que eu convivo com
uma vala. Tudo depende da vontade política de fazer acontecer", diz a
enfermeira Maria Helena.
(FONTE: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/03/politica/1441270863_849228.html).