Data: 23 abr 2015
Por: Renata Hummel*
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Sou
professora do Estado de SP desde 2009. E já mergulhei na divisão em
“categorias”. Entrei como “categoria L”, ou seja, não-concursada, e pegava
apenas aulas que “sobravam” dos efetivos.
Essa
categoria não existe mais, foi substituída pela “categoria O”, onde está a
maioria dos contratados. A categoria “O” é o que há de mais precário na rede:
só pode ter duas faltas por ano, não tem direito a usar a assistência médica do
estado (Iamspe), não tem direito à aposentadoria profissional (SPPrev), após um
ano de contrato deve cumprir “geladeira” por 40 dias, e após dois anos de
contrato deve cumprir a “duzentena” (200 dias sem poder pegar aula, ou seja,
quase um ano forçadamente desempregado). Nessa situação de “O”, estão “só”
cerca de 50 mil professores da rede estadual. Como alguns colegas me disseram:
para o governo, “somos uma sopa de letrinhas”.
Está bom
ou quer mais? Tem mais.
A gente
leva um susto quando entra na rede. Na licenciatura, muito professor (que está
sem entrar na sala de aula de ensino fundamental e médio há uns 15 anos) nos
diz que o problema da escola pública são as aulas “tradicionais”, sem
imaginação, sem criatividade. Que o problema está na forma de ensinar,
“conteudista” (com “decoreba”) e não “construtivista” e por aí vai.
Não é que
essas coisas não sejam problemas, porém o buraco é mais embaixo. Vou explicar
melhor: é certo que é difícil falar de Revolução Francesa para jovens que estão
mais interessados em outras coisas (em muitas outras coisas), e que não veem
como saber algo que aconteceu em 1789 possa fazer alguma diferença em 2015, por
exemplo. Mas mais difícil ainda é conseguir falar 5 minutos em uma sala lotada
com 40 jovens ou mais, em um dia de verão, com um ventilador apenas funcionando
e sem água nas torneiras.
É
complicado explicar como funcionam os “três poderes” no Brasil enquanto grande
parte dos estudantes insiste que “político é tudo ladrão” e que por isso não
interessa nem saber como funciona o sistema, “pois só o que eles fazem é
roubar”. Mas mais complicado ainda é lidar com bombas que explodem nos
banheiros, brigas por motivos fúteis (escapei algumas vezes, e por pouco, de
cadeiradas e de um soco na cara), fogo quase diário nas lixeiras, xingamentos
variados (muitas vezes vindos dos pais dos alunos e não dos alunos),
reclamações da coordenação e da direção de que você “não consegue controlar a
sala”, como se esse fosse o único objetivo da nossa formação e trabalho. O
buraco é mais embaixo quando você tem que lidar com alunos especiais em sala
sem qualquer formação ou material próprio para isso (e junto com outros 40
jovens pedindo atenção); quando não tem como imprimir textos para leitura, imagens,
ou mesmo provas, porque não tem toner nem folha de papel, e aí você imprime com
seu salário; quando você tem que disputar a tapa com outros professores a única
sala de vídeo que há na escola; quando você quer trabalhar em conjunto com
outras disciplinas, mas não há tempo para conversar com os outros professores;
quando o mato da escola está altíssimo e não tem verba para cortar; quando não
tem papel higiênico; quando ninguém limpou as salas porque as moças da limpeza
são terceirizadas, a empresa declarou falência e elas não recebem salário há
dois meses; quando a cozinha foi terceirizada e enquanto não chegam as novas
trabalhadoras precarizadas os alunos tem que comer bolachas com manteiga;
quando mais da metade de seus colegas toma estimulante ou fluoxetina para
aguentar o tranco de dar aulas em duas ou três escolas diferentes, das 7h da
matina às 23h; quando seu salário, mesmo trabalhando em duas escolas
diferentes, cerca de 40 horas por semana (40 horas por semana são as cumpridas
na escola, não as de preparação e planejamento de aulas, correção de trabalhos
– essas, me arrisco a dizer, ultrapassam esse tempo em umas 15 horas a mais),
com cerca de 700 alunos, não chega a R$ 2.600.
Está bom
ou quer mais? Tem mais.
Este ano,
a situação que já era essa que contei acima, piorou. O governador Geraldo
Alckmin, dando continuidade ao cuidadoso processo de destruição da escola
pública iniciado nos governos anteriores, fechou cerca de 3.000 salas de aula
(qualquer sala com menos de 30 alunos inscritos no começo do ano foi fechada e
seus alunos redistribuídos em outras), extinguiu cargos de coordenação,
remanejou funcionários que tinham mais de 20 anos de escola (na minha escola, a
“Tia Cris“, funcionária de gerações e gerações na escola, foi remanejada
para outra, e a choradeira que assisti, entre alunos e professores, foi de
cortar o coração), cortou verbas (de pintura, jardinagem, folhas de sulfite,
papel higiênico, sabonete, toner, consertos em geral, infra-estrutura das
salas, etc), forçou a duzentena na “categoria O” e decretou “reajuste zero”
para os professores, sem cobrir sequer a inflação do período.
Quer mais
ou está bom?
Ah, não
tem como esquecer o famigerado “bônus” cópia bizarra de uma política
norte-americana de premiação de professores conforme resultados de alunos,
resultado esse medido em uma prova apenas (ora, mas não éramos
construtivistas?). Um bônus que pune escolas com problemas sérios (culpa dos
professores?), e premia apenas parte da rede, como se apenas alguns colegas
tivessem trabalhado e outros não. Dito isso, que solução temos nós,
profissionais da educação, a não ser entrar em greve?
Entrar em
greve significa ter desconto de salário, ter faltas no prontuário, ter que
repor as aulas em sábados, contraturnos ou recesso, ouvir de pais e alunos que
“professor ganha bem, tem férias de 30 dias e reclama de barriga cheia”, ouvir
de colegas de trabalho que “professor grevista gosta é de ficar dormindo em
casa enquanto os outros trabalham”, visitar escolas com comando de greve e ter
que explicar o que está fazendo para os policiais que a diretora chamou (não
aconteceu comigo, mas com vários colegas), acompanhar as negociações na
Assembleia Legislativa e na Secretaria de Educação, aguardando horas na chuva
para ver o que o governo ofereceu e sair de lá chateado porque não querem nem
conversar, ir a todas as Assembleias na sexta, com mais de 60 mil professores,
e nenhuma TV ou jornal dar sequer uma linha (e quando dá, não escuta nenhum
professor, apenas reproduz a pauta do governo).
Entrar em
greve é receber também apoio de muita gente, inclusive alunos, que quando
resolvem entrar na briga também (faltando no dia das Assembleias, criando
debates e discussão de ideias, acompanhando os passos dos professores) sofrem
repressão nas escolas (alguns colegas marcam provas justamente nesse dia,
algumas direções recusam os pedidos de debate dos alunos, alguns chegam a
receber advertências e telefonemas para os pais), com direções e supervisões
(que em maioria são cargos indicados) que nos acusam de “fazer a cabeça” dos
estudantes ou de “atrapalhar” o aprendizado.
Entrar em
greve é ter que lidar com a desconfiança no principal sindicato (enquanto os
outros sindicatos se reunem secretamente com o governo no meio da greve), pois
a sua presidente terminou uma greve em 2013 contra a vontade de grande parte
dos professores, aceitando migalhas do governo: o fim da quarentena, um
concurso público e a inclusão do “categoria O” no Iamspe, dos quais o governo
só cumpriu um (e mesmo assim, precariamente, pois grande parte dos professores
que iriam ser chamados ainda não foram e estão trabalhando como contratados). É
ter que estar com um olho no governo e outro no sindicato.
E, mesmo
assim, com tudo isso e apesar de tudo isso: estamos em greve. Estou em greve.
Dessa
vez, tudo parece diferente das outras: tem muita gente nas redes sociais nos
ouvindo (embora na imprensa tradicional tudo continue como sempre foi), nos
apoiando, tem muito aluno participando, tem muito colega que disse que nunca
mais parava por causa do sindicato, parado.
Tem muita
gente exigindo uma postura firme do sindicato, da presidente, dos partidos. Tem
gente cantando “o professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo” nas
Assembleias. Tem gente discutindo a importância de uma escola pública de
qualidade. Por isso, dessa vez estou acreditando firmemente que “não tem
arrego”.
Escrevo
este texto na véspera da negociação com o governo (que se encerrou no início da
tarde de quinta-feira 23 de abril e não resultou em nenhum avanço) e da nossa
importante assembleia de sexta. As definições dessa semana não apenas podem
decidir o futuro da categoria de professores, mas o futuro da escola pública.
Aguardemos.
*Renata
Hummel é
professora de sociologia na rede estadual paulista. Graduada – bacharel e
licenciada – em ciências sociais pela PUC-SP , com especialização em história,
sociedade e cultura pela PUC-SP. Também foi colega dos editores de FAROFAFÁ e Samuel no
curso de jornalismo da ECA-USP.
(FONTE:
http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/04/23/sou-professora-estou-em-greve-e-explico-o-porque/)
FOTOS: MÍDIA
NINJA
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