“A GLOBO É A RESPONSÁVEL PELO NÃO APROFUNDAMENTO DA DEMOCRACIA NO
BRASIL”
ENTREVISTA COM LAURINDO LALO LEAL FILHO, PROFESSOR DA USP.
Por Rafael
Tatemoto
Laurindo Lalo Leal
Filho é professor aposentado da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Seu principal objeto de
estudo tem sido a análise de políticas públicas de comunicação, em especial
para a televisão. Publicou, entre outros, os livros “Atrás das Câmeras:
relações entre Estado, Cultura e Televisão” e “A melhor TV do mundo: o modelo
britânico de televisão”. Hoje, apresenta o programa VerTv, exibido pela TV
Brasil e é colunista do site Carta Maior.
Nessa entrevista para o Brasil de Fato, parte da cobertura
especial “Globo 50 anos – O que comemorar?”, Laurindo falou sobre a história da
emissora, os interesses que ela representa e como sua atuação se torna um
obstáculo à ampliação da liberdade de expressão em nosso país.
Brasil de Fato: A Rede Globo está comemorando seu aniversário de 50
anos. Como ela serve de exemplo e nos ajuda a entender como os meios de
comunicação foram estruturados no Brasil?
Laurindo Lalo Leal Filho: As Organizações Globo ocuparam um
espaço que foi aberto na sociedade brasileira a partir da ideia de que não deve
existir regulação para os meios de comunicação. A TV Globo é herdeira do jornal
e da rádio Globo, que ocuparam, desde o início, sem nenhum tipo de controle, o
espaço eletromagnético, as ondas de rádio e TV. Com isso, criaram uma estrutura
que acabou se tornando praticamente monopolista. As concorrentes que surgiram
acabaram por adotar o seu modelo, mas nunca conseguiram atingir os mesmos graus
e índices de cobertura.
Ela conseguiu isso graças, primeiro, à total falta de regulação e,
segundo, às relações que ela sempre buscou ter com os membros do poder,
particularmente, aqueles mais conservadores.
A forte presença da Globo no cenário brasileiro é fruto da conjugação de
vários fatores que acabaram determinando essa posição, que lhe deu a condição
de pautar o debate político no Brasil.
Hoje, é a Globo que determina o que as pessoas vão conversar: é sobre
novela, futebol ou escândalo político. São esses três eixos de conteúdo que ela
oferece, de forma quase monopolista, sem que haja qualquer tipo de alternativa
a esse debate.
A Globo se tornou um poder que impede uma maior circulação de ideias e a
ampliação da liberdade de expressão. Hoje, o debate público é controlado pela
Globo.
Como se deu esse processo em que a Globo se torna a maior empresa de
comunicação do país?
O início foi o jornal O Globo. Depois veio a construção de
canais para o rádio, entre os anos de 1930 e 1940. Em 1950, quando a televisão
entra no Brasil, demora um pouco para as organizações Globo perceberem a
importância desse novo veículo, mas, quando percebem, passam a fazer uma
articulação, primeiro, para conseguir a concessão para um canal e, depois,
obter benesses para tornar esse canal equipado.
O jornal e a rádio Globo obtiveram, através do seus presidente, Roberto
Marinho, o canal que era pensado originalmente para ser a primeira emissora
pública brasileira, que seria a TV Nacional, no Rio de Janeiro, durante a
década de 50, no governo de Getúlio Vargas. Naquela época, o monopólio das
comunicações estava nas mãos do Assis Chateaubriand, dono dos Diários
Associados. Ele impediu, após a morte do Vargas, a criação dessa televisão
pública.
As Organizações Globo se beneficiaram dessa ação do Chateaubriand contra
o então presidente Juscelino Kubitschek. O Juscelino não criou a TV Nacional,
mas acabou entregando o canal para a Globo. Esse foi o processo de outorga, que
era uma forma de [o Juscelino] conquistar o apoio desse grupo que era
economicamente mais bem organizado do ponto de vista empresarial que os Diários
Associados, que já enfrentava uma crise. Esse foi o apoio político, mas houve
também o apoio econômico.
Esse apoio a Globo foi buscar fora do Brasil, fazendo o famoso acordo
com a [empresa estadunidense] Time-Life, garantindo, na época, 5 milhões de
dólares para levantar as Organizações Globo. Esse processo foi considerado
inconstitucional por uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] na Câmara dos
Deputados, porque era uma empresa estrangeira investindo em uma empresa de
comunicação brasileira. Entretanto, na ditadura militar essa decisão não foi
levada em conta pelo governo federal e aí a Globo decolou. Teve, portanto,
primeiro o apoio do Juscelino e depois dos militares.
Nesse processo, os Diários Associados foram à bancarrota, a Globo ocupou
esse vácuo, emergindo como a grande empresa de comunicação do Brasil.
Você falou das relações com os setores conservadores. Especificamente em
relação à ditadura, qual foi o papel da Globo?
O início da história golpista da Globo, ainda com a rádio e o jornal,
pode ser localizada na tentativa de golpe contra o governo Vargas. Ali se
tentou um golpe que foi adiado por dez anos: de 1954, com a morte de Vargas,
para 1964, com a deposição do Jango [como era conhecido o ex-presidente João
Goulart]. Houve uma campanha sistemática contra ele – como a que fazem hoje
contra a presidente Dilma –, dando todo o apoio ao golpe militar e, depois,
fazendo a sustentação política da ditadura, em troca de favores e vantagens.
Nesse sentido, qual o saldo da atuação da Globo na política brasileira?
A Globo é a responsável pelo não aprofundamento da democracia no Brasil.
Ela faz isso através de dois mecanismos. O primeiro é a questão cultural,
mantendo a população alienada, afastada do processo político através de uma
programação que faz com que as pessoas deixem de prestar atenção a aquilo que é
essencial à vida delas enquanto cidadãs, distraindo com a superficialidade da
programação. A Globo é responsável pela despolitização do brasileiro.
De outro lado, está a defesa de interesses antipopulares. Nesses 50
anos, do governo Vargas até hoje, [a Globo] esteve comprometida com as classes
dominantes do Brasil, todas as bandeiras populares que aprofundariam a
democratização do país são demonizadas.
Quais bandeiras, por exemplo?
Podemos citar o caso das eleições diretas [processo de mobilização da
sociedade civil conhecido como “Diretas Já”, ocorrido entre os anos de 1983 e
1984]. Naquele momento, por exemplo, era muito interessante manter as eleições
indiretas, sobre as quais ela mantinha um controle muito maior. As diretas
poderiam levar à eleição de um líder popular que não atenderia aos interesses
da Globo.
A rede Globo usou todos os recursos para impedir a eleição do Leonel
Brizola para o governo do Rio de Janeiro em 1982. Ela se colocou ao lado
daqueles que queriam fraudar o pleito. Depois, quando ele ganhou, se
tornou persona non grata na emissora.
Outra ação nefasta da Globo é perseguir políticos com posições não
conservadoras, com posições mais voltadas para os interesses populares,
tratando de maneira negativa. Excluiu Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio de
Janeiro. Trata de forma pejorativa líderes populares, como o [dirigente do MST,
João Pedro] Stedile. Ou nem abre espaço para essas figuras. O próprio
[ex-presidente] Lula sempre foi tratado de uma forma menor, subalterna. Há uma
política editorial antipopular que é a marca dos 50 anos da rede Globo.
Pode-se dizer que é uma linha editorial de manipulação?
Uma política editorial de manipulação contra os interesses populares,
sempre a favor das elites.
Do ponto de vista da estrutura da Globo, como ela consegue pautar o
debate nacional?
Ela acaba pautando os temas e discussões no país. Ela tem enraizamento
graças a um processo de afiliação por todo o Brasil que frauda a legislação,
que não permite o oligopólio. É um enraizamento de cima para baixo, vindo do
Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, que se espalha para todo o país. Há uma
aliança com as elites locais, que reproduzem em seus estados a mesma linha
político-ideológico da Rede Globo. Esse controle sobre todo o país faz com que
questões importantes, de interesse do povo, que deveriam estar sendo debatidas,
acabam não tendo espaço.
O Roberto Marinho deixou isso muito claro. Quando ele defendia a “TV
Escola” [televisão pública do Ministério da Educação], o argumento que ele
usava é de que se você tem todo o conteúdo produzido em um local central, você
tem muito mais facilidade de controle sobre esse conteúdo. Isso ele disse para
a “TV Escola”, mas vale para também o conteúdo jornalístico. Com a
centralização da informação, tem-se uma capacidade muito grande de impor a
pauta no país todo.
Há quem diga que, hoje, a imprensa é o grande partido de oposição. Você
concorda?
Ela é. Não sou eu quem digo. A própria ex-presidente da Associação
Nacional dos Jornais disse isso há alguns anos. “Como a oposição está muito
frágil, a imprensa tem que assumir seu papel”. Então, nos governos Lula e Dilma
a oposição está centrada nos grandes meios de comunicação que, inclusive,
pautam os partidos de oposição. São inúmeros os casos em que a mídia levanta um
problema e os partidos de oposição vão atrás, quando, em uma democracia
consolidada, seria exatamente o oposto: seriam os partidos que deveriam
levantar as questões antigoverno e a mídia iria cobrir. Hoje, a mídia é o
grande partido de oposição e a Rede Globo é o principal agente desse partido.
Você falou como a Globo impede o avanço da democracia brasileira. Toda
vez que se fala, por exemplo, em democratização dos meios de comunicação, a
Globo fala em “censura”. Como responder a isso?
Na verdade, eles são os censores. Eles é que fazem a censura de inúmeros
assuntos, temas e angústias da sociedade brasileira, que não têm espaço na sua
programação. Apesar de estarmos há mais de 30 anos sem censura oficial, eles
usam um conceito de fácil assimilação pela população, e que ainda tem
reverberação por aquilo que ocorreu durante o regime militar, para taxar
aqueles que querem justamente o contrário, aqueles que querem o fim da censura
estabelecida por esses meios e a ampliação da liberdade de expressão. A batalha
pela liberdade de expressão é uma batalha difícil, porque nós temos que
contrapor um conceito de fácil assimilação, um conceito que tem de ser
explicado em seus detalhes, que é o da liberdade de expressão. Quando se quer a
regulação dos meios de comunicação, se quer que mais vozes possam se expressar
na sociedade brasileira.
A Rede Globo quer o monopólio total, o controle absoluto das ideias,
informações e valores que circulam no país e, por isso, utilizam todos os
recursos para que a liberdade de expressão seja uma liberdade controlada por
eles.
(FONTE: http://www.brasildefato.com.br/node/31890)
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