Por
Marcio de Souza Castilho, em 14/04/2015 na edição 846.
A aprovação da proposta de emenda constitucional
que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, na Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara dos Deputados, exige uma profunda reflexão sobre o papel dos
meios de comunicação na cobertura jornalística sobre jovens acusados de autoria
de atos infracionais. Como jornais e revistas percebem a situação de crianças e
adolescentes em conflito com a lei diariamente em suas narrativas? Qual o tipo
de agendamento produzido pela mídia e sua relação com o fortalecimento de
medidas autoritárias e soluções de força por parte do poder público? Será que a
imprensa tradicional está conseguindo provocar uma reflexão crítica sobre o
tema ou apenas contribui para banalizá-lo?
Uma leitura mais atenta do que é produzido
diariamente aponta que, apesar do destaque conferido à pauta sobre a situação
da infância e da juventude no Brasil, boa parte dos órgãos de imprensa não vem
conseguindo analisar com profundidade o fenômeno. Nesse sentido, a cobertura
ganha destaque apenas quantitativamente.
Orientados por uma lógica punitiva como solução
para o problema de jovens acusados de diferentes tipos de delitos, certos
grupos de comunicação operam na perspectiva da produção do medo em reportagens
e editoriais, legitimando assim alternativas conservadoras, desde a necessidade
de uma polícia mais numerosa e “choques de ordem” até a existência de leis mais
rigorosas. É importante ressaltar que o medo é uma categoria essencial como
medida de controle e contenção social por parte do poder público para tratar
uma parcela da população identificada como “outro indesejado” em espaços
populares representados como lócus privilegiado da
criminalidade.
Uma importante leitura a esse respeito é o texto “Risco
e sofrimento evitável: a imagem da polícia no noticiário de crime”, de
Paulo Vaz, Carolina Sá-Carvalho e Mariana Pombo. Nele, os autores mostram o
modo como a mídia constrói a ideia do sofrimento evitável, ou seja, afastar da
sociedade aqueles que virtualmente podem cometer crimes no futuro. Tal lógica
impõe sacrifícios no presente, fortalecendo a indústria da segurança privada em
condomínios, shoppings e carros blindados. Na outra ponta do tecido social,
jovens negros, pobres, moradores de periferias e favelas, são o alvo
preferencial do nosso sistema penal seletivo e excludente. As consequências da
montagem desse aparato punitivo são os números do quadro carcerário brasileiro,
que como sabemos não está voltado para o trabalho de ressocialização dos que ali
estão. O Brasil concentra a quarta maior população de presidiários no mundo,
com mais de 500 mil confinados. As estatísticas tendem a crescer com a proposta
da redução da maioridade penal, cuja lógica segue o mesmo princípio de
contenção de riscos ou de sofrimentos a serem evitados por parte de quem está
para além dos muros.
Proteção
e dignidade
Há outras questões que devem ser objeto de reflexão
neste tipo de cobertura midiática. Parte dos veículos de grande audiência na TV
mantém uma relação de conivência com os aparelhos repressivos. Autointitulados
de jornalísticos, os programas policialescos, por exemplo, expõem jovens
suspeitos publicamente em rede local ou nacional apelando para uma linguagem
sensacionalista, criminalizante, com apresentadores aos gritos no estúdio
pregando o ódio e a violência. Não apenas isso. Ainda hoje, encontramos a
autoridade policial como fonte única em matérias de jornal. Os chamados “autos
de resistência” em favelas e periferias das grandes cidades dificilmente são
objeto de uma abordagem crítica por parte dos meios de comunicação. Para
concluir, embora a lista seja mais extensa, podemos citar a falta de
problematização quanto ao emprego da confissão como método de interrogatório,
abrindo espaço para a prática de tortura. Como afirmou certa vez o criminalista
Nilo Batista, “confissão e tortura são companheiras milenares”.
Enquanto reforça determinados aspectos, a mídia
omite outros, como a pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (2012),
demonstrando que cerca de 80% dos delitos cometidos por jovens envolvem
principalmente roubo, furto e tráfico, não estando relacionados, portanto, com
homicídios. Ao contrário, gerações inteiras têm sido perdidas, vítimas da
violência, nas áreas mais pobres das grandes cidades.
Essa realidade tende a se agravar com a aprovação
da proposta de redução da maioridade penal. A sua primeira aprovação, na
Comissão de Constituição e Justiça, confirma a lógica de um estado que, para
promover a vida, não em sua totalidade, adota mecanismos de uma violência
depuradora de eliminação do outro, agora com a imputabilidade da sua população
mais jovem. Materializa-se, portanto, um sistema que tende a se transformar
continuamente em máquina letal. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, o
exercício sistemático de mecanismos de exceção torna o conceito de democracia
precário justamente porque transforma o que era temporário e excepcional em
regra pelo Estado.
A violência que se impôs, mais uma vez, no Complexo
do Alemão, nos últimos dias, incluindo a morte de uma criança de 10 anos, é
mais um exemplo da vigência de um estado de exceção permanente no Rio de
Janeiro e em outros espaços populares no país. É por isso que não há um sentido
de repressão nas favelas que pode ser localizado num momento histórico específico
ou como anomalia de um passado ditatorial, mas uma violência contínua.
Diante do recrudescimento das medidas de exceção
tornando-se regra no Brasil, não há como não recorrer a Agamben neste momento,
retomando a discussão sobre a maioridade penal:
“Na medida
em que o estado de exceção é, de fato, ‘desejado’, ele inaugura um novo
paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção.
O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível
decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente”.
Acrescentaria que o poder soberano hoje no Brasil
não reside na figura singular de um mandatário. Será mais apropriado falar num
tipo de soberania parlamentar cujos representantes decidem a necessidade para
praticar a exceção, buscando incluí-la num ordenamento jurídico e fazendo
coincidir a justiça com a política. O debate em torno da redução da maioridade
penal nos obriga a discutir, como sugere o pensador italiano, o que significa
agir politicamente neste momento.
Quanto ao jornalismo, concluo voltando àquela
pergunta inicial do texto sobre o sentido da cobertura sobre atos infracionais
que levam a medidas de privação de liberdade de adolescentes. Podemos partir da
premissa que produzir tal conteúdo noticioso significa muito pouco se
proprietários dos veículos de comunicação e jornalistas não assumirem o
compromisso ético de reavaliar seus modos de atuação, tratando a questão da
infância e da juventude não em programas sensacionalistas de TVs ou como “caso
de segurança pública” em editorias policiais de jornais, mas na perspectiva do
direito à proteção e dignidade da criança e do adolescente previsto em nossa
Constituição Federal.
Marcio de
Souza Castilho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade
Federal Fluminense (UFF)
Nenhum comentário:
Postar um comentário