TEXTO I
RICARDO ANTUNES: ESPECTROS, FALÁCIAS E FALÉSIAS.
09/11/2013
Um espectro ronda o Brasil: o da terceirização total, não só das
atividades-meio, como já existe, mas também das atividades-fim, como propõe o
projeto de lei nº 4.330, do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO).
Sua justificativa é singela: "A empresa moderna tem de
concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou
da prestação de serviço". Mas a propositura é eivada de falácias, como
vamos indicar neste espaço.
Primeira falácia: a terceirização cria empregos. Como hoje temos
aproximadamente 12 milhões de terceirizados no Brasil, ela cumpriria papel de
relevo na ampliação do mercado de trabalho.
Mas esse argumento omite que os terceirizados têm jornada de trabalho em
média bem maior do que o conjunto dos assalariados contratados sem tempo
determinado.
Assim, o que ocorre é que onde três trabalham com direitos e por tempo
não determinado, aproximadamente dois terceirizados acabam por realizar o mesmo
trabalho, padecendo de maior intensificação e jornadas mais longevas. Desse
modo, em vez de efetivamente empregar, a terceirização desemprega.
Segunda falácia: os terceirizados percebem salários, assim devem
agradecer pelo emprego que obtêm.
Mas esse argumento "esquece" que os salários dos terceirizados
são bem menores do que os dos demais trabalhadores, especialmente os que estão
na base da indústria e dos serviços.
O que as pesquisam mostram, quando realizadas com rigor científico, é
que os terceirizados trabalham mais e recebem menos.
Terceira falácia: os terceirizados têm direitos. Esse argumento omite
que é exatamente neste âmbito das relações de trabalho que a burla e a fraude
se expandem como praga. E quanto mais na base da pirâmide estão os assalariados
terceirizados, maiores são as subtrações.
Bastaria dizer que, na Justiça do Trabalho, há incontáveis casos de
terceirizados que não conseguem nem sequer localizar a empresa contratante, que
não poucas vezes desaparece sem deixar rastro.
Muitos terceirizados estão há anos sem usufruir as férias, pois a
contingência e a incerteza avassalam o seu cotidiano.
E, vale lembrar, só uma minoria consegue ir à Justiça do Trabalho, pois
o terceirizado não tem nem tempo nem recurso e quase sempre carece do apoio de
sindicatos para fazê-lo. E sabemos que, nos serviços, setor no qual se expande
celeremente a terceirização, viceja também a ampla informalidade e a alta
rotatividade.
Quarta falácia: terceirizar é bom, pois "especializa" e
"qualifica" a empresa. Mas seria bom explicar por que essas
atividades terceirizadas são as que frequentam com mais constância as listas de
acidentes de trabalho. E mais: no serviço público, elas não raro aumentam os
custos, sendo fonte inimaginável de corrupção.
Bastaria lembrar as empresas terceirizadas que fazem a coleta do lixo
urbano. E a brutalidade sem limites que é ver um trabalhador correr como louco
atrás dos caminhões para manter as "metas" e a
"produtividade" na coleta privada dos lixos nas cidades.
O essencial que o PL 4.330 tenta esconder, em meio a tantas falácias, é
que a terceirização, especialmente para os "de baixo" que não dispõem
do capital cultural que sobra aos estratos superiores, têm dois objetivos
basais. Primeiro, reduzir salários, diminuindo direitos. Segundo, e não menos
importante: fragmentar e desorganizar ainda mais a classe trabalhadora, agora
convertida em classe "colaboradora".
Se aprovado esse PL 4.330, ele terá um efeito erosivo ainda maior na
nossa já gigantesca falésia social.
RICARDO ANTUNES, 60, é professor
titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). É autor de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil" e
"Os Sentidos do Trabalho".
(FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/11/1368894-ricardo-antunes-espectros-falacias-e-falesias.shtml).
TEXTO II
RICARDO ANTUNES: "A TERCEIRIZAÇÃO É DEVASTADORA PARA O BRASIL"
Sociólogo afirma que flexibilização compromete a CLT e precariza as
relações de trabalho
por Carlos André Moreira
No último dia 8, a Câmara dos Deputados aprovou o texto principal do Projeto de Lei 4.330/04,
que regulamenta o trabalho terceirizado no Brasil. O texto, que abre a
possibilidade de terceirização de todos os serviços de uma empresa, e não
apenas atividades secundárias, provocou protestos e uma ampla discussão sobre seu
impacto no conjunto das leis trabalhistas do país. Para o sociólogo e professor
da Unicamp Ricardo Antunes, o projeto é a extensão para todo o universo do
trabalho de uma estrutura precária que é característica do trabalho
terceirizado.
O que representa a aprovação da lei que regulamenta a terceirização?
O reflexo disso no mercado de trabalho, em particular no conjunto dos
trabalhadores e trabalhadoras do Brasil será devastador. Porque embora o
projeto e seus defensores digam que estão regulamentando a situação de 12
milhões de trabalhadores, que é a estimativa que temos hoje do número
aproximado de terceirizados, a verdade é que esse PL, se aprovado, vai rasgar a
CLT e implantar uma terceirização total de consequências imprevisíveis. Por
exemplo, nós sabemos hoje que os trabalhadores terceirizados trabalham até 30%
mais e recebem até 30% menos, são aqueles em que incidem os mais altos índices
de acidentes de trabalho, são aqueles com os quais a legislação do trabalho é
mais burlada, são aqueles que, quando entram na Justiça do Trabalho, a empresa
mantenedora já fechou e não deixou rastro, e são aqueles que têm a maior
dificuldade de representação sindical. Então, não é difícil imaginar o que vai
acontecer quando você expande isso para a totalidade da nossa população
economicamente ativa. É uma alteração que quebra a ideia celetista de um padrão
mínimo equânime e igualitário para a força de trabalho regulamentada e permite
a desregulamentação ampliada de todos os setores da classe de trabalho
brasileira.
O discurso do universo corporativo contemporâneo, muito influenciado
pelas companhias de tecnologia do Vale do Silício, é de que os negócios da nova
era digital precisam ser ágeis e fluidos. Nesse contexto, leis com décadas de
validade e suas garantias sólidas são vistas como entrave?
É essa a questão. Na verdade, essa questão não vem só da experiência
recente do Vale do Silício, nos Estados Unidos, mas antes disso, em outro
contexto e noutra realidade, do Toyotismo japonês, e depois, o que resultou
disso, das formas de acumulação flexíveis. Como a produção deve ser flexível, a
classe trabalhadora deve ser flexível: usa-se e descarta-se. Só que tem um
traço decisivo: o trabalho é uma atividade vital para milhões de homens e
mulheres São 100 milhões no Brasil e quatro a cinco bilhões de pessoas no mundo
que dependem de trabalho para sobreviver. O trabalho não pode ser uma coisa
líquida porque é um bem sólido. E é evidente que quando você destrói um bem
sólido, a dignidade e o direito ao trabalho, você está criando uma sociedade da
selva. E é bom não pensar que a classe trabalhadora não vai responder, porque
vai sim. Ela vai levar umas semanas para assimilar o que se passou. Mas como o
trabalhador brasileiro considera a CLT a sua Constituição, nós vamos ter
embates sociais, e o mercado de trabalho vai virar uma confusão, porque a
Justiça do Trabalho vai perder espaço, a CLT desaparece, tudo se terceiriza,
então nós vamos entrar num terreno pantanoso e quem perde com isso são as
forças do trabalho.
Mas não parece ter havido reação alguma.
Porque a aprovação foi feita de afogadilho. Esse Congresso que hoje tem
amplo repúdio popular, agora sob a batuta de seu novo comandante, lépido e
faceiro, está passando coisas graves sem debates. Os trabalhadores não entendem
direito a PL 4330, vai demorar um tempo para assimilar. De fato, as
resistências primeiras foram pequenas, até porque, em uma semana, foi decidido
que ele seria votado goela abaixo, porque a realidade do Congresso mudou, o
governo Dilma está numa crise profunda, e muita gente está aproveitando para
passar de supetão, quase que na calada da noite, questões que são vitais para
100 milhões de trabalhadores que fazem o país produzir e não deveriam ser mais
penalizados.
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