Agendada
para dezembro de 2009, a I Conferência Nacional de Comunicação permitirá a
realização de um debate público representativo sobre os rumos da comunicação
de dimensão inédita no país. O encontro abrirá espaço para que Estado e
sociedade civil, incluindo os setores empresariais, as entidades de
trabalhadores e diversas outras organizações discutam diretrizes para
políticas públicas do setor e tragam à luz diferentes visões sobre temas como
concessões de rádio e televisão, violação de direitos humanos na mídia,
proteção a crianças e adolescentes e direitos civis na internet.
A conferência acontece depois de anos de pressão do movimento social e de
organizações que atuam pela democratização da comunicação. Embora haja, por
parte de várias delas, ceticismo em relação aos resultados do encontro em
Brasília, há o reconhecimento de que é extremamente significativo abrir uma
discussão que sempre se restringiu aos gabinetes.
Estarão em
pauta alguns temas basilares, em especial a liberdade de expressão. Se esta é
aceita, de maneira geral, como direito fundamental, a compreensão sobre seu
significado prático está longe de ser unívoca. Nesse cenário, a conferência
será oportuna para confrontar as diferentes visões existentes: estarão em
jogo o papel do Estado na garantia de direitos humanos e os limites dos
atores privados no exercício deles. Tal debate acontece nas sociedades
ocidentais, sob diferentes perspectivas, há pelo menos 220 anos.
Ao longo da história
Em 25 de
setembro de 1789, os Estados Unidos ratificaram seu Bill of Rights
como emenda à Constituição, estabelecendo que «o congresso não deve fazer
leis (...) diminuindo a liberdade de expressão ou da imprensa”. Sete dias
depois, a Assembleia Nacional Constituinte francesa aprovou a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em seu 11º artigo
estabeleceu que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever,
imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos
termos previstos na lei”. Nos dois casos, o recado mirava um claro algoz: o
Estado não deveria impor limites à liberdade de expressão.
A reivindicação não era nova. Um século e meio antes, o inglês John Milton
havia publicado seu panfleto Areopagitica, em que clamava pela
liberdade de imprimir independentemente de licença. Textos com o mesmo
espírito marcam documentos mais recentes, como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU, pactos, convenções e constituições em todo o mundo,
inclusive no Brasil. A proposição de caráter liberal nunca impediu, contudo,
que Estados Unidos, França e Reino Unido – só para tomar os exemplos citados
– estabelecessem leis para regular o exercício das liberdades de expressão e
de imprensa, justamente no sentido de garanti-las. Essas normas se
fundamentam na noção de que a garantia da fruição desse direito por todos os
seres humanos depende justamente da ação do Estado para se efetivar.
Os marcos
regulatórios se tornaram ainda mais importantes quando meios eletrônicos como
rádio e televisão se transformaram no principal espaço público de circulação
de ideias e valores na sociedade. As barreiras técnicas, econômicas e,
consequentemente, políticas para se fazer ouvir nessa ágora ampliada
consagraram um enorme poder aos poucos que obtinham esse privilégio de
transmissão. Sem tais mecanismos legais de regulação, o poder político e
econômico de particulares passava a garantir a liberdade de expressão de
poucos e a asfixiar a maioria.
Essa
constatação criou um aparente paradoxo: o Estado passava a ser entendido ao
mesmo tempo como o principal algoz e o principal garantidor do direito humano
à liberdade de expressão.
Sem heróis
e vilões pré-determinados, a disputa passou a se dar a partir de diferentes
interpretações sobre o significado de liberdade de expressão e na posição
favorável ou contrária a textos legais e mecanismos institucionais que
fortalecem a participação e a incidência do Estado nas questões de
comunicação. Como consequência desse embate, a bandeira da defesa da
liberdade de expressão foi apropriada nas últimas décadas justamente por
aqueles que, por um lado, mais se beneficiam dela e, por outro, mais
dificultam sua fruição pelos demais. Conformou-se, assim, uma estratégia
ludibriosa, que transformou os detentores dos meios de comunicação em arautos
da liberdade e deixou aqueles que questionam o excessivo poder desses meios a
empunhar a bandeira da regulação e do controle.
O pulo do gato
A
transferência do direito à liberdade de expressão de seres humanos para empresas
esbarra em problemas fundamentais. O principal deles é o fato de o debate
público se dar hoje principalmente nos meios de comunicação de massa. Se
estes estão na mão de poucas empresas, são elas que determinam quem tem e
quem não tem voz no espaço público. Se determinadas vozes têm direito a
circular mais que outras, então essa liberdade se dá em terrenos desiguais.
A visão
mais liberal diz que a demanda do público guiaria a oferta de conteúdos,
determinando seu sucesso ou seu fracasso, o que seria um “contrapoder” aos
possíveis efeitos distorcivos da liberdade de expressão das empresas
(liberdade que, por conveniência destas, tem sido chamado de liberdade de
imprensa). Assim, o “controle remoto” e a opção por determinados jornais e
revistas determinaria a prevalência e a sobrevivência daqueles veículos que
mais refletem os interesses da população. Essa visão de crença cega no
mercado é fruto ou de inocência ou de uma perspectiva mercadológica que se
mostra antidemocrática. Ao confiar ao mercado da comunicação de massa o papel
de circulador das ideias e valores da sociedade, cria-se um condicionante
político e econômico à liberdade de expressão. Isso se dá por três motivos:
1) meios de comunicação não são neutros, portanto não têm interesse em circular
todas as diferentes visões e pontos de vista; 2) como todo mercado, o acesso
direto aos meios de produção e distribuição é viabilizado apenas aos
detentores de capital; 3) na comunicação, há barreiras de entrada e de
permanência especialmente problemáticas, por conta de especificidades da
economia da informação e das limitações técnicas dos meios eletrônicos (o
espectro, no caso de rádio e TV).
Além disso,
se tomadas as principais lógicas que sustentam a liberdade de expressão, como
a busca da verdade e o fortalecimento da democracia, esse direito precisa vir
acompanhado do direito à informação, que implica na garantia de que
informações não sejam omitidas e que todas as diferentes perspectivas e
visões sejam postas em cena. Sem isso, os objetivos intrínsecos à defesa da
liberdade de expressão ficam prejudicados.
Direito à comunicação e papel do Estado
Esses
aspectos evidenciam como tomar a liberdade de expressão como garantia contra
o poder do Estado é enxergar apenas uma pequena parte da questão. Em primeiro
lugar, é necessário atrelar a liberdade de expressão ao direito à informação.
Além disso, é preciso garantir que cidadãos e cidadãs tenham não apenas a
proteção contra arbítrios do Estado ou de entes privados, mas condições de
produzir e distribuir comunicação no espaço público midiático. Portanto, não
se trata apenas de uma liberdade negativa, mas da necessidade da garantia do
direito à comunicação, que inclui a liberdade de expressão nos meios de
comunicação e o direito à informação.
A afirmação
da comunicação como direito cria necessariamente obrigações para o Estado,
que deve garanti-lo a todos. Os meios de comunicação são os principais
espaços públicos de circulação de ideias, valores e opiniões. Manter uma
acessibilidade democrática a esse espaço – sem dependência e diferenciação de
acordo com o poder econômico ou político – é condição indispensável para a
democracia se efetivar. Desse ponto de vista, pluralidade e diversidade de
meios de comunicação, por um lado, e pluralidade e diversidade de conteúdos
veiculados, por outro, são alguns dos principais indicadores de efetivação do
direito à comunicação.
Há quatro
tipos de ações que o Estado pode promover para garantir esse direito: 1)
Provimento: em diferentes modalidades, desde infraestrutura de acesso às
telecomunicações até meios públicos de radiodifusão; 2) Regramento: aqui vale
especialmente o papel de legislador que define as regras de funcionamento do
sistema; 3) Políticas públicas: medidas de fomento à produção (difundidas na
área da cultura e do audiovisual, mas ainda ausentes nos outros campos),
distribuição e acesso (visando à universalização dos serviços públicos
essenciais); 4) Regulação e fiscalização: mecanismos de incidência sobre as
atividades privadas e públicas visando à garantia da liberdade de expressão e
do direito à comunicação dos cidadãos.
A regulação
da atividade de comunicação deve abranger dois aspectos: o primeiro, mais
óbvio, tem a ver com os efeitos diretos do discurso dos meios de comunicação,
entendendo-os como sujeitos a limitações aplicáveis a qualquer cidadão
(calúnia, injúria e difamação, por exemplo). O segundo e mais importante leva
em conta o seu poder e lugar de fala privilegiados e os efeitos sociais de
seu discurso. Esse deve ter como objetivo justamente garantir o direito
humano à liberdade de expressão. Aqui entra uma série de ações para promover
a alocação democrática das concessões e estabelecer mecanismos de
monitoramento e punição de violações a direitos humanos cometidas pelos meios
de comunicação, apenas para citar dois exemplos relevantes. Deve haver também
ações para promover o acesso da sociedade aos meios de comunicação que são
objeto de concessão, com mecanismos como cotas de produção independente
(realizada por outro produtor que não a própria emissora) e o direito de
antena, que garante tempo para veiculação de material produzido por
organizações da sociedade civil. No rádio e na TV, também deve se buscar
mecanismos para evitar no conjunto da programação o predomínio avassalador de
produções estrangeiras ou feitas em apenas uma região do país, ou qualquer
tipo de hegemonia que asfixie a diversidade e a pluralidade.
O momento da Conferência
No Brasil,
a ação do Estado é fraca nas quatro atribuições. Não bastasse a ausência de
políticas de promoção da liberdade de expressão e do direito à comunicação
por parte do Executivo, o Supremo Tribunal Federal tem apresentado
perspectivas que ignoram a complexidade do debate. No julgamento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que derrubou a Lei de
Imprensa, por exemplo, o relator Carlos Ayres Brito insistiu na visão da
intervenção do Estado apenas como ameaça à liberdade de expressão,
reproduzindo uma visão coerente com o século XVIII, mas incompatível com a
realidade atual.
Foi
justamente para buscar enfrentar esse cenário que movimentos sociais,
organizações de representação dos trabalhadores e organizações da sociedade
civil que trabalham na luta pelo direito à comunicação se organizaram para
reivindicar a convocação da I Conferência Nacional de Comunicação. Houve um
longo processo de mobilização antes de o Governo Federal decidir pela
convocação da Conferência. Aparentemente, o receio em relação às
consequências da abertura do debate sobre o tema foi suplantado pela opção
estratégica de usar o espaço para mediação entre interesses conflitantes do
setor empresarial.
Do ponto de
vista da sociedade civil organizada, não há dúvidas de que a convocação da
Conferência é, em si, um marco. O desafio é fazer com que ela de fato tenha o
papel de afirmar objetivos gerais para um sistema de comunicações no Brasil –
em especial de defesa do direito à comunicação – e de apontar diretrizes para
regulação e políticas públicas para o setor, estabelecendo referências para a
construção de um novo modelo institucional para as comunicações no país.
A
apresentação de propostas vai colocar em confronto perspectivas diferentes
sobre outros princípios além da liberdade de expressão. Os empresários de
radiodifusão, por exemplo, postam-se como defensores do conteúdo nacional. Na
prática, suas ações mostram que sua adesão a esse princípio não é assim tão
rígida: em 2002, foram eles que apoiaram a emenda constitucional que abriu
participação para o capital estrangeiro nas comunicações, para tomar apenas
um exemplo.
Para os
setores que defendem o fortalecimento do conteúdo nacional plural e diverso,
com forte produção regional e independente, como é o caso das entidades da
sociedade civil que estão à frente do processo, é preciso cuidado para não se
encantar com o canto da sereia. Para as emissoras, o interesse comercial
próprio segue sendo o principal mote. “É de sua natureza”, diria o escorpião
ao picar o jacaré após atravessar o rio em suas costas.
Propostas para mudar o quadro
A
transformação do quadro da comunicação no Brasil depende de uma guinada nos
rumos das políticas que vêm sendo aplicadas. Entre os pontos que devem
ser entendidos como bandeiras nessa Conferência estão:
• Mudanças nos processos de concessões de rádio e TV
Hoje os
critérios para novas concessões privilegiam os aspectos econômicos, e o
processo de renovação de concessões é praticamente automático. É preciso
definir critérios transparentes e democráticos para concessões e renovações,
com o objetivo de garantir diversidade e pluralidade de conteúdo. Também é
necessário estabelecer mecanismos de participação da sociedade no processo.
• Regulamentação dos artigos 220, 221 e 223 da Constituição Federal
A Constituição Federal prevê mecanismos de defesa contra programação que
atente ao estabelecido no próprio texto constitucional, proíbe monopólios e
oligopólios nos meios de comunicação, garante espaço para a produção regional
e independente e estabelece a complementaridade dos sistemas público, privado
e estatal. Contudo, esses artigos estão há mais de 20 anos sem sair do papel.
A Conferência deve definir as bases para essa regulamentação.
• Fortalecimento do sistema público de comunicação e fomento a rádios e
TVs comunitárias
O sistema
público de comunicação é uma realidade ainda incipiente; da mesma forma,
rádios e TVs comunitárias são mantidas como marginais no sistema de
comunicação no Brasil. É preciso estabelecer uma política de fomento aos
meios públicos e comunitários, com espaço para essas emissoras no espectro
analógico e digital, instrumentos de gestão democrática e mecanismos que
viabilizem sua sustentabilidade.
• Estabelecimento de mecanismos de controle social da comunicação
Hoje o cidadão não tem como se defender de
violações a direitos humanos praticadas nos conteúdos veiculados por meios de
comunicação, nem tem direito a participar na definição de políticas de
comunicação. Depois da revogação da Lei de Imprensa, perdeu-se até a
regulamentação do direito de resposta, garantido pela Constituição Federal. É
preciso construir instrumentos que permitam a todos os cidadãos a incidência
sobre essas questões.
• Universalização da banda larga e inclusão digital
O acesso à
internet é hoje fundamental para ampliar o direito à informação e à
comunicação dos cidadãos. Embora o número de usuários seja crescente, o
acesso residencial ainda é dependente da lógica de mercado, o que exclui
muitos municípios e faz com que as tarifas brasileiras estejam entre as mais
caras do mundo. É preciso transformar a banda larga em serviço prestado em
regime público, com o uso da FUST para viabilizar sua universalização e a
implementação de uma política vigorosa de inclusão digital.
•
Novo marco regulatório para a convergência
O Brasil
não resolveu as questões de democratização do século XX e se vê frente aos
desafios trazidos pela convergência tecnológica e empresarial do século XXI.
Para garantir direitos nesse cenário, é necessário um novo marco regulatório
(conjunto de leis, decretos, normas etc.) com ênfase no interesse público e
na garantia de direitos civis, além de um órgão regulador que tenha
incidência sobre o conjunto das questões, inclusive os aspectos de conteúdo.
Oficialmente,
a Conferência está sendo organizada por uma comissão que reúne 26
representantes do governo federal, dos empresários do setor e da sociedade
civil não empresarial. Entre estas estão o Intervozes, o Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC), a Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária (Abraço) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Para ampliar
a mobilização, a sociedade civil não empresarial tem se organizado em 24
comissões estaduais e na Comissão Nacional Pró-Conferência, que somadas já
reúnem cerca de 500 entidades.
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